Sobre commons, antropofagia e andrades

Cândida Nobre

Cândida Nobre é jornalista, publicitária, mestre em Comunicação pela UFPB

Oswald de Andrade falou, avisou, manifestou-se: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Insistiu sobre tudo o que temos discutido em relação ao comportamento da cibercultura como a última novidade de todos os tempos. Lá, no ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha, 1928 do calendário cristão, Oswald, que não usava óculos de aro, que não era careca, não era Mário nem Carlos nem Drummond, mas que também era Andrade que também era Modernista, já dizia muito sobre o século XXI e o movimento de apropriação que a periferia poderia fazer dos conteúdos informacionais. Um modernista pós-moderno?

Santaella explica que, para o Manifesto Antropófago, “as culturas periféricas devem aprender como selecionar, devorar e traduzir criativamente as melhores informações provenientes das culturas dominantes, como uma maneira de converter o tabu em totem e de buscar na alegria a prova dos nove”.

E aprendemos. Não que a 'cultura dominante' esteja alegre com isso (não é mesmo, Ministra Ana de Hollanda?), mas… e daí? Nós estamos. Inventamos uma nova forma de consumir música, cinema, literatura, notícia, a vida alheia: assistimos, comemos, engolimos, trituramos tudo e cuspimos novas e (até) inovadoras produções. Compartilhamos e (re) criamos as ideias de maneira diferente. Mas utilizamos os sistemas de possibilidades de produção e mediação a nosso favor.

“Nunca fomos catequizados. Inventamos foi o Carnaval”, disse Oswald. Inventamos as redes de informalidade de transmissão de nossa cultura. Tá aí o tecnobrega amplamente estudado por Oona Castro e Ronaldo Lemos que não nos deixa mentir. Falamos pelas rádios-poste, pelos posts de blogs, orkut e twitter, tomamos o poder da palavra. Queremos que ela seja de todos, mas não pertença a ninguém. Que possa ser proferida, mas não possuída.

Uma ideia numa redoma nunca fará um movimento, nunca será história, nunca fará revoluções. Tom Zé ironiza: “se João Gilberto tivesse um processo aberto e fosse nos tribunais cobrar direitos autorais de todo samba-canção que com a sua gravação passou a ser bossa nova, qualquer juiz de toga, de martelo ou de pistola, sem um minuto de pausa lhe dava ganho de causa”. E a ironia do sistema, com a desculpa de 'fomentar a cultura' estaria completa: João Gilberto seria ‘recompensado’. E nós perderíamos a bossa nova. Se a tivéssemos perdido, como o mesmo Tom Zé diz em outra letra, nossa capital continuaria sendo Buenos Aires para muitos estrangeiros que conheceram o país por causa da bossa nova.

A certa altura, Oswald debocha do discurso das instâncias de regulamentação social como sendo frutos da europeização nacional: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias*. Comi-o”. Penso que é exatamente o que acontece hoje com o confuso licenciamento defendido pela indústria do copyright e essa restritiva Lei de Direito Autoral que vigora no Brasil: discurso confuso, distante do que se pratica, longe de se tornar um mediador dos desejos da sociedade civil, longe de incentivar a cultura nacional. Queremos o simples, o trivial, capaz de conviver com nosso modo de lidar com os conteúdos que circulam por aí, digitais.

O Creative Commons estava sendo um excelente caminho no MinC, viu Ana de Hollanda? E não venham os defensores da Lei de Direito Autoral com a desculpa esfarrapada de que a licença CC reproduz um discurso imperialista. Soa absurdo, soa medíocre, subestima as vozes que se mobilizaram para que pudéssemos debater livremente a Reforma da LDA. Leiam aí Sérgio Amadeu e Ronaldo Lemos e me digam se podemos acreditar mesmo nisso.

A gente pode até não ter ouvido ou sequer lido a antropofagia modernista. Mas praticamos Andrade.

* A expressão, apesar de apresentar-se como um nome próprio é resultado de um jogo com a palavra ‘galimatias’ que, segundo o Aurélio, refere-se a um “discurso arrevesado, confuso, obscuro; babel de palavras cujo significado mal se pode entender”.


Cândida Nobre é jornalista, publicitária, mestre em Comunicação pela UFPB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas (Gmid) e uma das coordenadoras do Grupo de Discussão Publiciber. Atualmente é professora das faculdades Iesp e Idez e integra a edição da Revista Designo. Tem interesse em pesquisas sobre cópia, compartilhamento e produção colaborativa de conteúdos no âmbito da Cibercultura. Outras reflexões da autora podem ser lidas em seu site.

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